quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O AVÔ DESFORRADO

 O AVÔ DESFORRADO

A. A. de Assis

Pitotiko enfim cresceu, como prometido havia. “Quando for grande te mando pros confins”. A promessa se deu quando ele viu o avô surrado de chicote por Zé Baitão, doze anos antes. O avô miúdo, curvo ao peso dos mais de oitenta. Baitão cercou eles no caminho, lhes roubou a égua e a carga, e sádico bateu no velho. O menino jurou crescer. Agora voltou parrudo. 

     A perguntar cadê Baitão, correu as redondezas. O valente andava por lá, todos sabiam, porém ninguém ousava dizer em que onde, medo de que no confronto Pitotiko levasse a pior.

     O menino outrora franzino estava homem feito, peito desenvolvido, olhos firmes, panca de bom de briga. Mas a fama de Baitão assustava; o desalmado era infalível na mira, ligeiro na faca, braços enormes, pernas rápidas. Pegando Pitotiko, acabava com ele no primeiro lance.

     Se espalhou a notícia, Baitão ficou sabendo e se riu. Queria brincar com o garoto, dar-lhe uma lição. “Vou tirar a roupa desse fedelho e pendurar ele num pé de pau pra todo mundo ver”.

     A gente de juízo tentou tirar da cabeça do moço aquela ideia maluca de vingança. Melhor que voltasse pra cidade, esquecesse as juras, vivesse tranquilo, um jovem de tanto futuro.

     Vieram correndo avisar que Zé Baitão vinha vindo, ia entrar logo no povoado, armado até os dentes. “Deixa vir, que eu quero ele em campo aberto”. E Pitotiko se pôs ao largo, nem um canivete na mão. “Está doido”, o povo dizia. “Isso é suicídio”, choravam as senhoras do lugar.

     Zé Baitão chegou num baio, o chicote fazendo círculos no ar, o cigarro de palha pendurado nos beiços, a barba suja. Se foi direto no rumo do adversário. Pitotiko parado, mudo, os olhos acesos, de longe o povo espiando. Baitão saltou do cavalo, foi logo largando a primeira chicotada. Pitotiko pulou veloz, livrou-se do golpe, contragolpeou num zás, ninguém viu como tomou a chibata das mãos do gigante. Pinchou fora o couro, se arrojou na direção da fera. 

     Baitão tirou a faca, o moço fez uma cambalhota, rodopiou as pernas, a faca foi parar numa moita de mato. Revólver em punho, a boca espumando, o ensandecido Zé disparou tiro daqui, tiro dali, o rapaz saltitando que nem pipoca. Acabadas as balas, Pitotiko ali ainda inteiro, gente e mais gente olhando. “Ele tem o corpo fechado, só pode ser”, diziam.

     Um segundo revólver foi lançado ao pó mediante certeiro pontapé. Era agora corpo a corpo, o gigante desarmado, acerto limpo, no muque, hora de conferir quem era o bamba ali.

     Pitotiko finalmente falou: “Lhe disse que voltava crescido pra lhe mandar pros confins. Bater em velho ocê sabe... Vem agora, machão de bosta, vem bater num homem, vem se brio tem...”

     Pernada pra cá, braçada pra lá, Pitotiko deixou o desaforado cansar, bufar, grunir, até cair. Esfregou o focinho dele na poeira, fez ele pedir misericórdia, chamou o povo pra de perto ver a humilhação, mandou afastarem as mulheres e as crianças, tirou a roupa do imundo. “Vai ficar nu num pé de pau. Eu ia acabar com a vida dele, porém vou não, que nem a pena vale. Ocês depois amarrem o porquera no rabo de um burro e levem pro delegado. Meu avô, que os anjos o tenham, desforrado está, e pode enfim repousar em paz. Jurei, cumpri”.

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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 27-01-2022)  

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