“AMNESTIA”
A. A. de Assis
Vou falar de novo do professor Polyclínio. Ele era desses de não dizer as coisas sem minuciosa explicação. Cada palavra no seu devido lugar e com o significado exato. Um vizinho dele chegou meio avexado, falando dos entreveros que mantinha com a mulher: “Ela é dura na queda, seu professor. Tá certo que fiz minhas travessuras na vida, mas isso foi já faz muito tempo. Volta e meia ela me pega no pé e sai com os desaforos. Tem hora que chega a me dar gana de desmaridar. Só à custa de muita reza vale-me o santo de me reassossegar”.
O bom mestre pediu-lhe que mandasse Dona Zina falar com ele. Daria uns conselhos de velho experimentado, habituado a lidar com as mais complicadas filosofias, psicologias, etceterologias. Ela decerto haveria de acabar com aquelas rabugências.
A mulher foi, sentou-se, aceitou um chazinho. Provocada pelo paternal Polyclínio, narrou as artes do marido, reconhecendo, entretanto, que “o safado nos últimos tempos andava mais caseiro e quieto”.
– Pois olhe, querida vizinha e amiga, eu lhe garanto que o Lico se emendou de vez e de verdade. Então acho que está na hora de dar um fim nessas brigas tolas. Proponho que a senhora, generosa como é, além de perdoá-lo, lhe ofereça uma anistia.
– Merecer ele não merece, mas já perdoei sim senhor.
– Perdão é pouco. Tem que ser anistia mesmo. Perdão é coisa que muita gente diz que dá, mas não dá. Fica com a mágoa encalhada no coração. Basta um mínimo furrubundum pra vir tudo de novo à goela.
– Se explique mais melhor, faz favor.
– Explico sim. “Anistia”, no grego, é “amnestia” (de “mnes”, que significa “memória”). Juntando o prefixo “a”, que indica “negação”, temos “a-mnestia”, isto é, algo não lembrado, varrido da memória. Anistia é o mesmo que esquecimento total.
Dona Zina ficou mais perdida do que antes. Vá lá saber que trem era esse que o velho sábio estava tentando lhe enfiar no ouvido...
– Deixemos pra lá os gregos, disse ele. Quero só que a senhora esqueça todas as descabeçadas que o seu marido andou aprontando no bem antes do hoje. Quem sabe a senhora, mesmo sendo uma abençoada pessoa, também tenha alguma parte na culpa. Mas agora que os dois estão mais maduros tratem de apagar as más lembranças e comecem de novo a vida.
– O senhor professor acha que dá?
– Acho sim. “Amnestia”... anistia... esquecimento completo... Perdão é uma palavra bonita, mas anistia tem bem mais força: enxota da memória as causas da mágoa. Se alguém fez algo errado, esqueça de vez. E bola pra frente, cabeça erguida, coração limpinho. Entende?
– Entender não entendo muito não, mas entendo sim.
– Vá em paz. E dê um abração no meu amigo Lico.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-1-2022)
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