CONTOS

CONTOS E CRÔNICAS


A moça do jipe

Seu Nando vivia ali pacato e bom, baixinho, redondo, discreta calva, solteirão encalhado, atendendo a aldeia na vendinha de secos e molhados. Se deu que porém a moça passante brecou o jipe lhe passando um susto, não muito pelo de-repente do impacto, mas pela explosão da imagem. Aquela coisa louca, aquele jeitão de rir. Seu Nando tremeu total.
          Queria a moça informação sobre a estrada que levava a uma praia próxima, onde haveria reunião de surfistas e de agitadas meninas que nem ela, a que parecendo vir das nuvens caíra na porta dele.
          – Tem de voltar até o trevo e repegar o rumo.
          – Será que acerto?
          – Se quiser vou junto. Posso mostrar o caminho. Preciso mesmo ir lá, volto de ônibus. Me dá carona?
          – Sobe aí, tiozão!
          Zuuuuuuuuuuuuummmmmmmm... Tremeu de novo Seu Nando. Agora sim de medo. Moça maluca, 140 por hora naquele jipe trotão. Só não pediu pra descer por encabulação. Olhando as pernas dela, se distraiu. De agradecimento, ela deu-lhe na chegada um beijo. Na boca. Seu Nando ensandeceu de vez. Retribuiu grudando a moça, que todavia gostou. Rolaram na areia, rolaram no mar, a noite chegou.
          Na aldeia, no dia seguinte, o bochicho. Sumiu Seu Nando. Os vizinhos estanharam aquela coisa de ele na véspera haver fechado a venda cedo. Uns, que o viram entrar no jipe da moça, se espantaram mais ainda. Agora já era meio-dia, e de Seu Nando nada. Seria acidente? Seria acaso aquela moça alguma aparentada dele? Um galho dele? Seria?...
          Mandaram o aviso a um compadre que vivia em cidade próxima, único mais-íntimo que se sabia dele. Comunicaram às autoridades, botaram notícia no rádio, espalharam de boca em boca o misterioso evento.
          Ele tão bom homem, nunca perturbara ninguém, vendeiro prestativo. Chegaram a supor que a moça do jipe fosse extraterrestre.
          Quase um mês mais tarde, já davam Seu Nando por inencontrável: afogado, engolido por tubarão, levado para um planeta distante... Até que noutro de-repente reapareceu ele, a barba crescida, a roupa em trapos, a cara de quem andara metido em muito complicada encrenca.
          – Depois eu conto o que aconteceu. Agora quero é tomar um banho, comer um bife enorme, dormir umas 24 horas. Avisem por aí que estou vivo.
          Geral curiosidade, só satisfeita no outro dia, com a presença de repórteres, fotógrafos, e os ouvidos atentos da aldeia inteira. Seu Nando tinha ido com a tal garota litoral acima, até a Bahia. Nem chegara a saber o nome dela, dizia apenas “Coisinha”, o resto era o fascínio.
          – Voltei de carona num caminhão, ajudando a carregar-descarregar em troca da comida. Desci no trevo e de lá vim caminhando.
          Os cartões de crédito que havia levado, duas semanas depois já acusavam ultrapassagem de limite. Foi a grana acabar e a moça sumir, sem ele imaginar para que destino nem se ela era gente mesmo, talvez fosse irreal. Sabia só que nas alegrias era mulher ao máximo.
          Sorte dele que o gerente do banco entendeu a história, refez-lhe o crédito. E o bom homem se reinstalou atrás do balcão, de onde oito meses passados ouviu outra freada.
          – Olhe aqui, tiozão! Trouxe pra você a sua obra.
          Ela desceu do jipe mostrando a barriga prenha. Voltara para ter o bebê onde ele começara a ser feito. Seu Nando acolheu-a, guloso dela, pouco se importava se a criança era sua ou não. Pagou as despesas do parto, do berço, das roupinhas.
          Porém cadê a “Coisinha”?... Ninguém sabe, ninguém viu. Do jeito que rechegou, de novo magicamente sumiu.
          Criou-se a criança engatinhando ali na venda, assistida pela bondade de umas senhoras vizinhas. Ele um homem de tão generoso coração, baixinho, redondo, discreta calva, pela segunda vez abandonado no pique dos seus melhores sonhos.
          Se valeu? Ora se...


Silvinha da Silva
Silvinha da Silva empinou a cabeça, encarou a criançada, falou quente: “Quero fossa não, pessoal. O pai docês se foi pra melhor, mas a mãe tá aqui e garante o rango... Quero choradeira não!”
          Tonico, o pai, sofrera desastre, a jamanta despencara na pirambeira, o coitado morrera de susto antes mesmo de remorrer prensado na cabine. Sorte da família que o caminhão dava conserto e o seguro cobria. Então Silvinha derramou sofrimento até a hora do enterro, depois enxugou a mágoa, jurou que de fome ninguém iria padecer na casa dela.
          Mulher fêmea na hora do carinho, dera nove filhos ao Tonico. Mulher macha na hora de peitar os desafios da vida, prometeu aprender a guiar a jamanta, enfrentar a estrada, arrancar na marra o sustento da meninada. O mais velho, 16 anos, seria seu ajudante; os mais novos cuidariam uns dos outros na ausência da mãe; os vizinhos dariam lá uma olhada de vez em quando: “Não tem tempo ruim comigo não”, repetia firme Silvinha, mulher de raça forte e tutano no muque.
          No para-choque a frase-grito: “Se segura que lá vai eu!”. Lá ia Silvinha, Silvinha da Silva, fé em Deus e pé na tábua, sobe morro, desce morro, vira curva, os braços parrudos, morenos, domando o baita no asfalto, o rádio ligado tocando as modas da moda. Silvinha era de vencer muito veterano do volante.
          Partia de Santa Violeta recomendando juízo aos meninos, deixando o necessário para as despesas, dando adeus até o mês que vinha. Ia longe, até onde a carga a levasse: Belzonte, Salvador, Recife... na volta poderia ir até Porto Alegre... o que viesse ela traçava.
          Se meter com Silvinha da Silva era caçar encrenca feia. A fama dela começou logo a correr: derruba cinco valentes numa só pernada... bebe uma garrafa inteira de pinga e nem tonta fica... vence qualquer campeão na queda de braço...
          “Lenda que eles inventam”, dizia ela, “mas deixa que é bão... assim eles me respeitam mais e não abusam...” Ninguém ousava assaltar Silvinha na estrada. Um, que tentou, levou tamanha canivetada no umbigo que quase desparafusou as vergonhas. Levava tranquila a bolsa cheia de dinheiro, dormia onde dava sono. O caminhão dela, pintado de cor-de-rosa, de longe era reconhecido. A cor, explicava rindo, “era homenagem ao charme da mulher brasileira”, que ela queria continuar mulher, embora boa de briga. Pensava até se casar de novo, só que ia escolher com rigor: homem para ela não podia ser qualquer um; tinha que ser de Tonico para melhor, um cara raçudo e direito, caminhoneiro como o falecido, de preferência bonito, de boniteza lá ao jeito dela. Se aparecesse um nos moldes, topava amarrar com ele os trapos, começar outra penca de garotos.
          Conheceu Zé Marimbondo, ex-peão de rodeios, agora cinquentão pacato, criador e negociante de cavalos. Se ele aceitasse virar jamanteiro, se casariam. Boa lábia, Zé Marimbondo convenceu a mulher a ela mudar de ramo: “Nós vende o caminhão, compra mais terra vizinha da que eu tenho, a gente monta uma criação maior... será que tem vida melhor?...”
          Silvinha resmungou, teimou, tomou uns goles, não resistiu. Zé Marimbondo tinha jeito de mexicano, o chapelão sombreando fartos bigodes, violeiro de voz macia, bastou serestear pra ela numa noite de lua e Silvinha se derreteu de vez. “Vou buscar a criançada em Santa Violeta, volto em duas semanas com os trens de sala, quarto e cozinha; aí a gente vai no padre e no cartório. Mas olha que sou mulher ciumenta... abusa não, que tem pancadaria.”
          Vendido o caminhão, começaram vida nova. Silvinha, inquieta, lá um dia quis aprender a montar. Em pouco tempo ganhava longe do marido; burro chucro que o assustava, ela amansava em dois galopes. Zé Marimbondo avexou, complexou, definhou, deu de beber, morreu.  Silvinha da Silva, com mais dois filhos nas costas, chamou de novo a garotada, empinou a cabeça, falou quente: “Tem fossa não, pessoal. A mãe docês garante o rango... A criação tá crescendo, a cavalada aumentando, tem choradeira não!”  E um ano depois comprava mais terras vizinhas, partia para a grande pecuária... já tem gente até querendo lançar Silvinha pra prefeita do lugar...


Onidos da Osina
Mariquitinha Duas Bolas ganhou o apelido por conta daqueles arredondados quadris onde farta saúde formava um par de robustas esferas sacolejantes. Num sábado de fevereiro, anos atrás, cedinho acordou a patroa pedindo recesso de trabalho:
               – Vorto na quinta-feira de cinzas. Agora vou passar no Sovaco da Penha, grunir umas biribas e ajeitar a fachada aqui da menina pra sair no OO. Senhora vai me ver num luxo no OO.
               – E que coisa é OO?
               – Onidos da Osina... Rancho Carnavalesco Onidos da Osina, sabe não?... 
               Mariquitinha Duas Bolas tinha passado ilustre na crônica do carnaval. Seu currículo incluía itens como pastorinha da Escola de Samba Caçadoras da Floresta, destaque da Recordação das Magnólias, além de canja nos melhores blocos: Deslumbrados da Aurora, Cocada de Coco, Vila Sete dos Passarinhos, Rapadura Quente, Batuqueiros da Lua...
               Mas a glória dela era sair no OO. Talvez, quem sabe, pelo fato mesmo de esse OO lembrar-lhe as duas bolas do festejado apelido. O Onidos da Osina, naquele ano, prometia botar para quebrar. Primeiríssimo lugar, ninguém ousaria opor dúvida. A patroa que desculpasse, mas em tão distinguido momento não dava para choferar fogão. Era entrar na fantasia e deixar cair.
               Mariquitinha Duas Bolas era figura histórica, rainha máxima. Casar jamais pensara: tinha medo de arranjar marido chato. Marido ia incomodar. Ia querer que ela não fosse mais biritar no Sovaco da Penha. Ia ficar com ciúme do seu sucesso no OO. Melhor continuar solteira, mesmo cinquentona quase. Uma rainha não pode ser impedida de reinar. Marido atrapalha. Com a patroa é bem mais fácil conseguir licença.
               – Vorto na quinta de cinzas...
               – Tá bem, quarta é pouco, divirta-se. Nesses dias a gente manda trazer marmita.
               Mariquitinha foi lá dentro, vestiu-se de festa. Se mandou. De noite o Onidos da Osina sairia com seu carro surpresa. A cidade reuniu-se na Rua do Café, esperando o desfile. Passaram as primeiras escolas, os ranchos... nada do OO.
              A comissão julgadora nervosa no palanque. O prefeito, o delegado, a mulher do deputado, os importantes do lugar em exposição diante do povo que torcia, gritava, cantava, pulava. O Onidos aguardado como a grande atração da noite. Desfilaria num enorme carro alegórico em forma de navio, obra do velho Domingos Turco. Mas, cadê?...
             O prefeito, presidente da comissão, chamou um auxiliar e mandou ver lá no Domingos Turco o que acontecera. Veio rápido o relatório:
             – Sabe, doutor? Houve um pequeno engano. Fizeram o navio dentro do armazém do Amaro Alexandre, só que não dá pra passar na porta. Eles se esqueceram de tirar a medida, e agora estão lá discutindo se desmancham o navio ou derrubam a parede...
            O prefeito aproveitou para iniciar sua nova campanha política. Pegou o microfone e tonitroou: “Autorizo derrubarem o armazém inteiro se preciso for. Depois mando construir de novo, com dinheiro do meu bolso. O que não podemos é ficar sem a presença do OO neste garboso desfile!”
            Aplausos, foguetes, vivas. Marreta na parede. E o Onidos da Osina entrou triunfalmente na Rua do Café, Mariquitinha Duas Bolas sacolejando na primeira fila, os tamborins repicando, a tuba pomponando, as frigideiras ritmando o samba, o povo em delírio, gritando...
             Vitória retumbante do OO, medalha de honra para Mariquitinha, retrato nos jornais. Na quinta-feira a patroa esperou o retorno da cozinheira famosa. Que entretanto só no sábado apareceu.
             – Senhora adescurpe, vou ter que deixar o emprego. Tinha um viúvo holandês vendo o OO na rua, gamou ni mim, vai me levar pras Oropa. Quer casar...
            – Ué, você não dizia que marido incomoda?
            – Incomodar, incomoda. Mas tem hora que a gente não reseste... 


O avô desforrado

Pitotiko afinal cresceu, como havia prometido. “Vou crescer, te juro, e quando for grande te acerto, te mando pros confins”. A promessa se deu quando ele viu o avô surrado de chicote por Zé Baitão, doze anos antes, o avô miúdo, curvo ao peso de mais de oitenta verões. Baitão cercou eles no caminho, no alto da serra, lhes roubou a égua e a carga, e sádico bateu no velho. O menino jurou crescer. Agora voltou parrudo.
     A perguntar cadê Baitão correu os sítios das redondezas. O valente andava por lá, todos sabiam e tremiam, ninguém queria dizer em que onde, medo de que no confronto Pitotiko levasse a pior. Melhor jamais se encontrarem.
     O menino outrora franzino estava homem feito, peito desenvolvido, olhos firmes, panca de bom brigador. Mas a fama de Zé Baitão assustava, o desalmado era infalível na mira, ligeiro na faca, aqueles braços enormes, pernas rápidas. Pegando Pitotiko, acabava com ele no primeiro golpe. Cabrito enfrentando touro brabo.
     Se espalhou a notícia, Baitão ficou sabendo e se riu. Queria brincar com o garoto, dar-lhe uma lição. Não tinha batido nele quando bateu no velho porque o pequeno deu no pé. Era tempo agora de completar o serviço. “Vou tirar a roupa desse fedelho e pendurar ele num pé de pau pra todo mundo ver”. Falou isso em cada venda, zombeiro.
     A gente de juízo tentou tirar da cabeça do moço aquela ideia maluca de vingança. Melhor que voltasse pra cidade, esquecesse as juras, vivesse tranquilo, um jovem de tanto futuro. Conselhos todavia em vão. Era limpar a honra ou morrer, que sem isso não valeria viver.
     Vieram correndo avisar que Zé Baitão vinha vindo, ia entrar logo no povoado, armado até os dentes. “Deixa vir, que eu quero ele em campo aberto”. E Pitotiko se pôs ao largo, nem um canivete na mão. “Está doido”, o povo dizia. “Isso é suicídio”, choravam as senhoras do lugar.
     Zé Baitão chegou num cavalo baio, o chicote fazendo círculos no ar, o cigarro de palha pendurado nos beiços, a barba grisalha, suja. Se foi direto no rumo do adversário. Pitotiko parado, mudo, os olhos acesos, de longe o povo espiando. Baitão saltou do cavalo, foi logo largando a primeira chicotada. Pitotiko pulou veloz, livrou-se do golpe, contragolpeou num zás, ninguém viu como tomou a chibata das mãos do gigante. Pinchou fora o couro, se lançou na direção da fera. Baitão tirou a faca, o moço fez uma cambalhota, rodopiou as pernas, a faca foi parar numa moita de mato. Revólver em punho, a boca espumando, o ensandecido Zé disparou tiro daqui, tiro dali, o rapaz saltitando que nem pipoca. Acabadas as balas, Pitotiko ali ainda inteiro, gente e mais gente olhando sem crer no que via. “Ele tem o corpo fechado, só pode ser”, diziam.
     Um segundo revólver foi lançado à poeira com certeiro pontapé, antes mesmo de Baitão sacar. Era agora corpo a corpo, o gigante totalmente desarmado, acerto limpo, na raça, no muque, hora de conferir quem era ali o valente. Baitão com a barba babada, o orgulho ofendido, fera desmoralizada pela destreza do domador.
     Pitotiko finalmente falou: “Lhe disse que voltava crescido pra lhe mandar pros confins. Se encomenda pra quem puder, porco covarde, que os seus minutos tão contados. Bater em velho ocê sabe... Vem agora, machão de bosta, vem bater num homem, vem se brio tiver...”
     Pernada pra cá, braçada pra lá, Pitotiko deixou o desaforado cansar, bufar, grunir, até cair. Esfregou o focinho dele na poeira, fez ele pedir misericórdia, chamou o povo pra de perto ver a humilhação, mandou afastarem as mulheres e as crianças, tirou a roupa do imundo. “Queria isso, não era? Vai ter o que queria. Vai ficar nu num pé de pau. Eu ia acabar com a vida dele, porém vou não, que nem vale a pena, tá bom assim. Ocês depois amarrem o porquera no rabo de um burro e levem ele pro delegado. Meu avô, que os anjos o tenham, desforrado está, e pode enfim repousar em paz, Jurei, cumpri”.


A enchente
Silvedora e Sezefredo se encontra­ram, se gostaram, se casaram, se enlearam num xodó de fazer medo.
          Medo de os outros botarem mau olhado e o amor gorar, se reverter, se atrapalhar, desmastrear e súbito acabar. Mas não gorava não. Quanto mais passava o tempo, mais calor no assanhamento, ma­is amor no coração. Na primavera e no verão, também no outono e mais até no inver­no, era aquele achegamento com juras de amor eterno.
           Era de noite, de tarde, de manhã, de madrugada, toda hora para eles era hora de agarra-agarra, interminável saborosa farra, beijo no queixo, cosquinha no atrás-da-orelha, amor sem-pausa estava ali.
          Só quando ele ia para o eito é que os dois se desjuntavam. Morantes num pé de serra,  ia ele todo dia para o roçado, vol­tava embalado na hora do almoço e no fim da tarde, guloso dos carinhos dela, mais até que das gulodices da panela.
          E a boia era boa. A sopa de inhame, o caldo d'unto com taioba e couve, o feijão preto, a canjiquinha amarelinha, a costeleta de porco. Ele chegava de enxada no ombro, o corpo suado, um asso­bio na boca soprando dengosas modinhas, largava a tralha no terreiro e ti­bum no rio para o vespertino asseio. Silvedora já esperando com a roupa dele limpinha na mão, para as ale­grias da noite.
          Só eles os dois, e as estrelas no céu e um bicho ou outro piando nas redondezas. Depois da janta, a viola para a digestão. E zás de novo na cama, para a festa do amor-sem-fim.
          Só que tem que mas porém Silvedo­ra de repente embarrigou. Sezefredo e ela por uns tempos só pensavam no bebê. Que nasceu robusto e que na pia o nome de Ambrósio recebeu. Primogênito de uma ninhada de nove: três meninas e seis guapos garo­tões. Silvedora mal esvaziava e já de novo arredondava. Mas nem por isso o amor diminuía, antes pelo contrário mais crescia.
          Até que deu aquela enchente doida. Trinta dias chovia sem parar. Dilúvio parecia. Da serra desciam grossas enxur­radas levando as lavouras de arrasto. Era água de não mais acabar. O rio em frente da casa roncando, engordando, troncos batendo nas pedras, bichos do mato ro­lando embolados na correnteza, e não parava de chover.
          Um estrondo na madrugada. Era o curral caindo. Sezefredo acordou num susto, viu o rio levando as vacas, puxando junto o galinheiro, o cavalo, as cabras. Só a casa deles ainda em pé, sustentada nas pilastras altas. Ilhados ali, viam as águas já entrando pelas portas, Silvedora e a criançada chorando, rezan­do, Sezefredo pra-lá-pra-cá com uma corda na mão.
          O pé de manga tinha tronco forte, haveria de resistir. Pela janela atirou a corda, laçou um galho. O rio crescendo, rosnando. Sezefredo mandou as crian­ças se agarrarem na corda e subir na ár­vore. Mandou também Silvedora, que ainda conseguiu salvar-se a tempo.
          Ele Sezefredo rodopiou águas abaixo misturado com os pedaços da casa. Pa­redes, soalhos, alicerces, telhado, móveis, panelas, todo o seu ninho engolido pelo furor da correnteza. As crianças e a mãe olhando do alto da árvore sem nada po­der fazer.
            Parou na manhã seguinte a chuva. Silvedora desceu com toda a ninhada. Nessas horas chorar não vale; é levantar a cabeça e enfrentar. Re­começar. Reconstruir. Chegou todavia um recado.
          – Dona Dora: é pra senhora prepa­rar um feijãozinho aí, que Seu Fredo vem pro jantar. Ele mandou dizer que não morreu não. Salvou-se montado num pé de bananeira, mas engastalhou numa peroba e tá agora só espe­rando baixar mais um pouco o rio pra ele descer de lá.
           No chão mesmo. Foi assim ele chegar e Sezefredo mais Silvedora mandaram as crianças sair de perto, e pimba num mata-saudade de dar gosto. Donde nasceu o nono fruto, chamado Pluvioso da Sil­va, que já encontrou a casa de novo er­guida, a lavoura refeita, o curral e o gali­nheiro mais bonitos do que os que a en­chente carregara.


  
Marilinda, heroica mulher

Godô, que assinava Godofredo, chegou para tentar a vida na cidade nova. As ruas poeirentas assistiam ao erguimento simultâneo de centenas de casas, de madeira quase todas. Os moradores, por volta de cinco mil pioneiros, denunciavam pelo sotaque suas diferentes origens. Godô estava pronto para incorporar-se àquela aventura: vinha com algum capital, um jipe, muita esperança de enricar com a loja que planejava abrir.
          No Fagundes Hotel, na Pensão Familiar e na Hospedaria Dona Chica não havia quarto disponível, tudo lotado. Godô não teve alternativa senão pedir pousada numa das casas da “zona”, quarteirão afastado do centro, onde cheirosas mulheres davam colo aos solitários do lugar. Marilinda, vasta morena de fartos cabelos negros, abriu o quarto e o coração para acolher o hóspede. Ele, se quisesse, poderia ficar ali até alugar uma casa. Pagaria cama e comida; os carinhos seriam de graça. Marilinda, por uma dessas razões que a razão desconhece mas sempre aplaude, gostara dele, assim de primeira olhada.
          Em vez de alugar, Godô decidiu construir uma casa, com espaço para montar a loja na frente. Agradava-lhe, porém, a mordomia oferecida pela generosa hospedeira. Continuaria lá por uns três meses, o tempo que fosse necessário. Achava melhor do que hotel ou pensão: tinha conforto e companhia. Mais tarde, de alguma forma, compensaria Marilinda, tão bondosa era, embora bem mais Mari do que linda fosse.
          Terminada a construção, Godô montou estoque (secos, molhados, armarinhos, de um tudo), mobiliou a casa, mudou, abriu a loja, formou logo promissora freguesia. Sozinho de noite, sentia saudade; convidou então Marilinda para governanta. Ela aceitou chorando de feliz, saiu da “zona”, acomodou-se na casa do amigo. Trabalhava de cozinheira, arrumadeira, balconista, lavadeira. Terminado o expediente, acalorava o repouso do patrão.
          Solteiro, solteirão para bem dizer, com seus quarenta e tantos, ele jamais se casara. Por falta de tempo, dizia. Homem trabalhador, desde muito moço vinha juntando para se estabelecer num lugar de futuro. Ora se deu, todavia, que Marilinda um dia súbito embarrigou. O passado dela, mais por precisão do que por sem-vergonhice, não era lá essas coisas, desde menina na difícil vida-fácil. Mas coração puro estava ali, mulher leal, de serventia total, nunca reclamava, nada exigia, era toda uma oferta constante de trabalho e ternura ao patrão, agora futuro pai do seu primeiro filho, acidentalmente gerado.
          Godô não ficou bravo não. Antes se emocionou até, com a ideia de ganhar herdeiro. Abraçou a companheira, abriu um vinho. Mas a situação dos dois não poderia continuar daquele jeito, a criança teria que nascer em lar organizado, era urgente providenciar o casamento nos conformes da lei, da fé e dos costumes, o passado dela pouco importaria.
          Providenciou roupas melhores para a noiva, matriculou-a na escola para aprender as letras, as contas e os bons modos. Queria a mãe do seu filho devidamente transformada em dama,  que deveras ela  merecia,  tão  dedicada  a  ele  desde  o  dia  em  que ali chegara desospedado  e  cansado.  Era a amiga,  a  confidente,  a  servidora,  a  parceira  de  cama   e conversa. Seria injustiça descartá-la, agora que os negócios vinham rendendo e ela trazia no ventre a continuação dele, o filho não encomendado porém bem-vindo.
          O bebê nasceu direitinho, e macho. A mãe queria o nome de Godozinho, o pai preferiu José, homenagem ao avô que o criara. Marilinda teve mais quatro, formando com José bonita prole de três meninos e duas meninas. A loja crescendo sempre, junto com a cidade. Godô agora barrigudo, cabeça calva, prestígio grande no lugar, vereador, diretor de várias entidades, só não o lançaram candidato a prefeito porque ele de fato não quis: temia perder fregueses. Aceitou ser presidente do orfanato: queria ajudar as crianças pobres, principalmente as filhas de mães solteiras. Heroicas mulheres, dizia, dando Marilinda como exemplo. Ela teve a sorte de se casar; outras no entanto lutavam sozinhas, marginalizadas. O orfanato iria acolher suas crianças não encomendadas mas bem-vindas, como o José. E assim se fez.



Jardim do Imperador

O jardim foi sempre uma espécie de sala vip da cidade, o espaço nobre onde tudo acontecia. O footing na calçada em torno; o coreto ao centro – palco para retretas, palanque para comícios, altar para missas campais; ambulantes vendendo sorvete, pipoca, mariola; crianças brincando de dia; namorados brincando de noite.
          Segundo as atas, foi construído ainda na época da monarquia, em honra de Dom Pedro II, que naquele chão pisara. O nome aliás atesta-o: Jardim do Imperador, que edil nenhum até hoje ousou mudar. O povo diz às vezes “largo” ou “praça”, mas o nome oficial, de batismo, é “jardim” mesmo: Jardim do Imperador, orgulho do lugar.
          O problema era a indisciplina dos passantes. Em vez de caminhar pelas trilhas cuidadosamente mantidas e varridas pela prefeitura, insistiam em passar por cima dos canteiros. Daí que o chamado “coração da urbe” precisou ser várias vezes reconstruído. Cada novo prefeito, logo que assumia, redesenhava o recanto, replantava a grama, renovava as flores, repodava as árvores. Houve um que chamou arquitetos da capital para orientar a reforma, entretanto infrutiferamente.
        Campanhas nas escolas e através da rádio local, sermões do padre e do pastor, panfletos apelando à consciência da população, nada surtia efeito, sequer a ameaça de multas. Os passantes teimosamente continuavam passando por sobre defeituosos atalhos.  Só Seu Chiquinho entendia e explicava o fenômeno: “Falta de democracia acaba nisso. Me elejam prefeito e resolvo o caso”.
          Até que um dia Seu Chiquinho enfim prefeito se fez. Primeira providência, em cumprimento da promessa: desmanchou o jardim. Deixou intatos somente o coreto e as árvores; no demais mandou passar o arado e com enorme gramado cobriu a área inteira
          Em poucas semanas os passantes, no seu contínuo vaivém, fizeram novas trilhas, só que dessa vez a seu jeito, sem desenho algum traçado em gabinetes. “Democracia é assim: o povo criando seus próprios caminhos”, confirmava o sábio burgomestre, ditando os lances para a conclusão da obra: “Agora resta apenas calçar e retocar com o devido capricho as passarelas que o povo marcou, depois fazer os canteiros ao lado... e pronto, estará resolvido o problema. As linhas poderão até parecer um pouco tortas, porém o importante é que foram definidas pelos donos delas, os cidadãos passantes, na mais absoluta liberdade. E é isso que de fato interessa”.
          Seu Chiquinho estava certo: nunca mais indisciplinado algum pisou na grama nem chutou as flores, bastando hoje aos jardineiros aguar as plantinhas para conservá-las viçosas. “Democracia é assim”, insistia ele: “Quando o povo é que faz a lei, a lei se cumpre. Se o povo é que abre a trilha, por ela caminha o povo. Não há ninguém que obrigue ninguém a seguir sem vontade um rumo”.



A hora do espírito

No dia em que completei setenta anos, convoquei meu eu-corpo e meu eu-espírito para uma reunião muito séria. Fizemos um balanço do que em conjunto vivemos até então e ficou decidido o seguinte: que eu-corpo, aposentado, estressado, desmotivado, entregaria de vez o comando a eu-espírito.
          Nada contra eu-corpo. Até lhe sou gratíssimo pelas alegrias que desde criança me deu: pelos lugares em que me fez andar, pelas coisas bonitas que me permitiu ver, pelos odores, sabores, maciezas e outras gostosuras do mundo-matéria. Nem mesmo alguns contratempos me aborreceram: as dores de cabeça, os resfriados, as cólicas de rins, os dedões destroncados, essas coisas de que ninguém escapa. As próprias travessuras dele perdoo, as dos remotos bons tempos de jovem principalmente. Aos moços dá-se o direito de moderadamente pecar: há a eternidade inteira para a remissão.
          Agora, porém, começa outra etapa da vida, a quase-definitiva, e é portanto hora e vez de entronizar eu-espírito na direção dos atos. Eu-corpo que se distraia com as suas caminhadas matinais, seus mingaus, suas novelinhas de televisão, alegres e inocentes recreios tão próprios de quem nada mais cobiça nem nada mais tem a ver com a história deste mundo. Daqui para a frente, manda eu-espírito... Vive le roi!
          O que em setenta anos se fez sob a gerência de eu-corpo resultou praticamente inútil. A velha dupla ter-poder, mais uma vez, mostrou-se fofa, chocha e oca. São coisas efêmeras, vaidade pura. Aqui são conquistadas a duras penas (se e quando); aqui se diluem sem deixar sequer saudade. Vale a experiência, e tão só.
          Agora, sim, posso começar a de fato viver. Liberto das pressões de eu-corpo, finalmente eu-espírito inicia o ensaio para as maravilhas do fora-e-além do tempo.
          Nesta etapa, cada qual, conforme seu temperamento e suas preferências, tem um modo próprio de ser espiritualmente feliz e útil. Uns se dedicam ao trabalho gratuito e generoso em entidades assistenciais; outros ao cultivo da música, da pintura, da jardinagem; outros ainda à meditação e a fazer orações em favor dos que delas mais necessitam. Nada em troca de ganhar dinheiro, muito menos tendo por meta virar celebridade. Prazer mesmo, prazer intelectual, espiritual, que faz bem à gente e a quem por perto está. Só isso.
          Meu eu-espírito optou por ser feliz e útil compondo versos. Vez ou outra algum texto em prosa, mas prioritariamente versos. Velho sonho iniciado lá longe, no onde-e-quando fui menino, mas só agora livre para voar sem reticências nem ponto final.
          Sobretudo sem egoísmo. A arte me faz muito bem; no entanto não somente a mim. Reparto-a com quem nela possa encontrar algum benefício. Por exemplo: se faço trovas, cuido de fazê-las recheadas de mensagem boa. Se filosóficas, que elas ajudem alguém a pensar; se humorísticas, que ajudem alguém a sorrir; se líricas, que ajudem alguém a sonhar.
             É assim que treino para dar sequência à vida na eternidade. Eu-corpo, que do pó se originou, ao pó retornará; eu-espírito seguirá o rumo que Deus determinar.
          Deus determina o rumo da gente dando a cada um de nós um tipo de talento. Aos poetas, o belo talento que permite fazer do verso um modo de semear amor. 




A eleição da Vênus

Era, sem dúvida, uma escola de samba muito original, descontraída até no nome: Estraga-Lar, que aliás na época andava em campanha arrecadativa de fundos. Não exatamente com vistas a cobrir os ditos das cujas; muito pelo contrário: o povão tanto mais aplaudia as moças quanto mais ventiladas fossem. Os fundos seriam para reequipar a bateria e outros ziriguiduns.
          Os diretores decidiram que para animar a campanha (e aumentar o ganho com a venda de votos) haveria de surtir bom resultado a eleição de algo assim como rainha ou miss, porém que não fosse uma coisa nem outra, títulos por demais chavonizados. “Vamos pedir umas ideias ao professor Polycarpo”, e lá se foram consultar o sábio da cidade.
          Machadiano, o velho mestre sintonizou a inspiração nas graças da Grécia antiga, riu por dentro, botou pra fora a solução: “Elejam a Vênus Calipígia. Nenhum título expressará mais abundantemente o essencial nas artes do requebrado...”
     “Vênus Calipígia!”, repetiu de boca unânime a diretoria da Estraga. Todos tinham razoável noção do que fosse Vênus. De calipígios, contudo, pareciam pouco entender (será?). Mas o professor falou, tava sancionado.  Soava bonito, gordo, macio, solene. Vênus Calipígia ficou sendo o epíteto.
          Operava-se a venda dos votos durante os ensaios da escola de samba, assim de gente nas arquibancadas, o animador de voz barroca assanhando as torcidas, as candidatas calipigiando na passarela. “Reparem no calipígio dela!”, provocava inocente o espíquer. Bum-bum... bum-bum, ritmavam os bumbos, como se soubessem traduzir o grego.
          Abertas, afinal, ruidosamente, as urnas, a falta de iniciação em cultura clássica fez diferença mínima. A intuição do eleitorado mostrou-se mais uma vez atenta: por polpuda maioria de votos, deu o título a Margaridinha Pureza,  sedutor arranjo de rotundas, bem-distribuídas e bronzeadíssimas virtudes.
          Ah, sim, quanto ao significado de calipígio, o pessoal da Estraga-Lar só deu pela coisa muito tempo depois, quando um dos diretores, por acidental curiosidade, resolveu conferir no dicionário. A partir daí nenhuma outra Vênus se fez eleger por lá.


A  cólica de Sua Alteza

Quem me contou foi um cearense brincalhão, mas garantindo que tudo se dera como aqui será narrado. A cidadezinha recebera a visita de um príncipe que por aquelas áreas excursionava. Faixas saudando Sua Alteza, bandinha de música, a criançada abrindo alas, o povo todo em traje de festa.
          Chegado, saudado, discursado, o mais amedalhado visitante que o lugar já conhecera foi almoçar na chácara do prefeito. Vasta macarronada, carnes várias, o homem comeu além da conta, resultando inoportuno incômodo abdominal. A discreta pergunta a um dos empregados: “Onde é o banheiro?” A resposta simplória: “A gente aqui toma banho no rio ou na bacia; qual é que a alteza prefere?” O problema, porém, não era banho, eram outras necessidades: “Onde vocês fazem cocô?”, indagou o ilustre sem rodeios. “Ah, sim... nós costuma ir atrás da moita, lá fora... mas alteza também faz isso?”
          A alteza em apuros, o pessoal estudando a solução honrosa: “Se segura um pouco, que vamos cuidar dos preparativos”. Minutos depois voltou a dona da casa: “A alteza pode adentrar ali naquele aposento”.
          Já quase coisando nas calças, o príncipe fechou a porta, assustou-se com o cenário: jarros de flores em volta, um tapete vermelho, sobre o tapete um penico. Se é que príncipe também faz “dessas coisas”, então que as faça com a indispensável dignidade. Mas a hora não era apropriada para muitos raciocínios. O distinto sentou-se, aliviou-se. Um tanto desajeitado com a gorda retaguarda em tão acanhado recipiente, todavia...
         Resolvida a emergência, entrou em pauta outra circunstância: o papel. Nem sequer um pedaço de jornal. Usar o lenço? Nesses momentos vale tudo. Ia começar a operação quando ouviu a banda vindo na direção da casa...
         Que seria agora? Os músicos pararam em frente, o príncipe não conteve a curiosidade, levantou-se em condições não muito elegantes, foi espiar pela greta da janela. Era a homenagem mais estranha que já recebera em toda a sua biografia.
         A bandinha caprichando no dobrado, a criançada formando duas filas, no meio vinha entrando um par de moças trazendo vistosa bandeja de prata com o sucedâneo local do papel higiênico: meia dúzia de sabugos, mimosamente escolhidos. “Para a alteza havera de ser tudo muito especial”.


O dente penhorado

O distinto entrou numa fase de vento contra, perdeu tudo, ficou devendo a meio mundo, inclusive ao verdureiro. Uma nota comprida em tomate, alface, cenoura, a salada completa. Acontece que o verdureiro, homem pacato mas inimigo dessa coisa de levar cano, bateu pé firme. Encostou na parede o infeliz, a peixeira na mão, a voz enfezada: “Se o senhor não tem dinheiro, me pague com algum objeto... de mão vazia não volto”.
     Nada havia a oferecer: a casa, o carro, os eletrodomésticos, os passarinhos com gaiola e tudo, os ternos, a bicicleta do filho, os outros credores já haviam levado. Mas o homem insistia: “Alguma coisa havera de ter sobrado... já sei... esse dente aí, esse dentão de ouro que o senhor tem na boca, levo ele, deve estar valendo pacas. Ou levo ou o senhor penhora ele e me paga o que deve”.
     “Penhorar não dá – explicou o devedor – eu acho que ninguém aceita dente no prego. Que ideia mais estapafúrdia...”. O credor não quis saber de desculpa: “Se ninguém aceitar, eu aceito. Quando o senhor puder, me paga com juro, e aí então devolvo a joia”.
     Era um dente de estimação, colocado nos bons tempos, adorno que lhe garantira muitos belos sorrisos, um tesouro. Tudo, menos penhorar tal peça.
     A peixeira brilhou, a voz do verdureiro cada vez mais medonha, era ceder ou ter a barriga furada. Mas como extrair o dente, se ele não tinha como pagar? “Não tem mistério – emendou o credor – pago eu a conta ao doutor e debito em sua dívida. O ouro tá subindo de preço, deve cobrir tudo isso”.
     Recibo passado, o homem levou a joia e um documento em que o devedor lhe dava autorização para vender o objeto empenhado, caso a dívida não fosse paga após seis meses.
     Nesse meio tempo o devedor se encalacrou mais ainda, sumiu, dizem que se mandou para a Amazônia, sabe-se lá. Terminado o prazo, o verdureiro esperou mais algumas semanas, até que de repente começou a desfilar sorrindo mais que nunca. Achou melhor não vender o dente, seria um desperdício. Instalou a preciosidade na boca e se realizou.
     Se algum dia você encontrar por aí um verdureiro ostentando vislumbroso dentão, pode ser que não seja o mesmo, mas também pode ser que seja. Por via das dúvidas, melhor pagar pontualmente as alfaces que dele comprar...


A guerra das sanfonas


Maio de 1964, semana dos 17 anos de Maringá. Na programação, um concurso de sanfoneiros, a mais badalada atração da festa. Gente e mais gente se juntava pra ver de perto; quem não vinha ficava em casa acompanhando pelo rádio, em ferrenha torcida.
          Os artistas da sanfona de oito baixos chegavam de toda a região, alguns até de mais longe, prêmios convidativos, mais ainda o prestígio, a glória. As eliminatórias, durante a semana toda, eram o assunto único. Nhô Juca de mestre de cerimônia, caprichoso nos detalhes. Deu discussão, deu briga, tudo como convém a um festival que se preze. E aquele era uma verdadeira guerra.
          Gente ilustre da cidade formando a comissão julgadora, músicos importantes, políticos, intelectuais. Chegou a grande finalíssima. Veio junto a decepção ecoada na forma de estrondosa vaia. Protestos e mais protestos. Os julgadores xingados de todos os nomes.
          O motivo da bronca?... Magina: os sanfoneiros autênticos sentiram-se insultados e seus fãs-clubes se alvoroçaram. O grande problema: a comissão dera o primeiro lugar a um acordionista. Pior ainda: a um acordionista que tocara “El relicario” e “La cumparsita”. Absurdo. Onde já se viu enfiar acordeão em festa de sanfonas?...  De jeito maneira!
          Acordeão é ferramenta de gringo. “La cumparsita” é pra gente de língua enrolada. Nossa música é modinha, valsinha, toada, baião, que têm cheiro e gosto de terra, alma de povo. A comissão julgadora deveria ter pensado nisso. A grita era geral, contagiante. Queriam porque queriam a anulação do concurso. Injusto e impatriótico.
          Sob apupos e assovios, o homem da “La cumparsita” recebeu, porém, assim mesmo o prêmio. A culpa afinal não era dele, era dos julgadores, mas naquela hora ninguém tinha serenidade para raciocinar direito. Era grito, era palavrão, era ovo lançado contra o palanque. O caso foi assunto do dia por dias e dias,  fofoca das boas, sobretudo das quentes.
          Uma pena, porque depois de tamanha encrenca nunca mais se fez concurso de sanfoneiros por aqui. Pelo menos não daquele porte. Uma tradição que poderia ter permanecido, não fosse a insensibilidade daquela desastrada comissão julgadora.


Status puxa status


Um ilustre da cidade, tentando explicar na roda de amigos sua preocupação constante em bem-vestir-se, bem-morar e bem-rodar, quase chega a convencer os demais sobre as razões de ser ele assim. Não é que encontre prazer na esnobação, mas o contexto profissional assim exige.
          Poderia levar uma vida mais simples, utilizar automóvel menor e menos bebedor de combustível, morar numa casa que não exigisse tantos cuidados e tantos empregados, vestir roupas comuns, frequentar menos as reuniões sociais e políticas. Isso tem hora que enche, diz ele. Mas não consegue viver modestamente. Sua posição impõe esmeros especiais.
          Dá para entender que posar de bacana é imperativo de certos ramos de negócio. Faz parte do ofício. Quanto mais esnoba, mais impressiona. Quanto mais impressiona, mais portas consegue abrir. Quanto mais portas consegue abrir, mais dinheiro ganha.
          Não é culpa dele, insiste. É do contexto. Seu ramo baseia-se no “ter”. E para “ter mais” é preciso fazer de conta que já tem mais do que o necessário.
          Se ele estacionar em frente ao escritório de um cliente caixa alta num carrinho classe média, talvez nem seja recebido. Chegando num carrão e vestindo terno com gravata e colete, o rosto vistoso, perfumado, o grande cliente vem pessoalmente abrir-lhe a porta, sente-se homenageado com a sua presença, e fecha o negócio na hora. Coisas da vida.
          Status puxa status. O mundo é assim, o homem é assim, e não será ele quem vai mudar. Seu papel é realizar bons negócios, não discutir costumes. Se é preciso rodar num carrão, ele roda. Se é preciso vestir ternos caros, ele veste. Para ele não se trata de vaidade, trata-se de investimento.
          Os amigos contra-argumentam sugerindo que tudo isso é muito falso. Mas o distinto não está a fim de discutir filosofias. Realista por fora e por dentro, lembra que “ostentação é ferramenta de trabalho”, especialmente para quem lida com clientela abonada. Optar pela simplicidade seria arriscar-se a perder excelentes oportunidades.E como é domingo, e o bate-papo é num botequim, o “esnobador por dever de ofício” esquece as etiquetas, deixa de lado o costumeiro uísque, e manda vir uma pinguinha das boas, com pastel de carne seca.


O tesouro maior

O maior tesouro de uma cidade são as famílias que nela se formaram. Gosto dessa frase, não sei se minha ou se ouvida alhures. Gosto e assino embaixo.
     Ele paulista, ela mineira. Chegaram aqui ainda meninos, no início da década de 1940. Conheceram-se num baile do Aero Clube. Namoraram, casaram, mutiplicaram. Nasceram-lhes seis rapazes e quatro moças, logo vieram seis noras e quatro genros. Depois os netos, bisnetos. Na festa das bodas de ouro do casal pioneiro o clã já reunia mais de cem pessoas.
     Que família é essa? Tantas, parecidas todas. Basta pegar a lista dos telefones. Qualquer um daqueles sobrenomes daria uma bela história dentro da bonita história de Maringá.
     O velho casal está aí ainda, recordando momentos marcantes. A inauguração da cidade no dia 10 de maio de 1947. A eleição do primeiro prefeito. A chegada do primeiro avião, do primeiro ônibus, do primeiro trem. Os primeiros jornais, as primeiras emissoras de rádio, a chegada do primeiro bispo, a inauguração da Catedral. A primeira televisão. A primeira faculdade, a universidade.
     No início era uma aldeia, uma pequena comunidade em que todos se conheciam. Aos poucos formou-se um enorme aglomerado em que ninguém mais sabe quem é quem. Mais de trezentos mil, quase quatrocentos mil maringaenses, fora os vizinhos que diariamente aqui circulam.
     Mas nas reuniões de família os elos permanecem. Cada clã é uma rosa, cada parente uma pétala. O maior tesouro de Maringá. Bonito isso.
     Num dia desses estive no jantar de aniversário de um amigo pioneiro. Quando o conheci, em 1955, ele era só ele e os irmãos menores. Agora a seu redor está um grupão unido e lindo, desde os de cabelos brancos até a meninada de colo.
     Poeta chora à toa. Chorei.


 Mãe postiça

Numa reunião se senhoras, foi solicitado que cada uma que se levantasse e fizesse a autoapresentação. Uma delas causou impacto, ao dizer que tinha122 filhos.
          Era uma freira vestida em roupas comuns. Explicou: “Dirijo um orfanato; sou mãe postiça de todas aquelas crianças, que não têm mais suas mães de verdade”.
          A mãe postiça (usemos o termo carinhosamente escolhido pela freirinha) exerce intensamente a função maternal, mesmo que jamais tenha gerado um filho. E no momento em que assume a responsabilidade de proteger e orientar uma criança ela se realiza, a ponto de nem sentir falta da maternidade biológica.
          Estão nesse caso não apenas as religiosas que trabalham em orfanatos, mas também todas aquelas que, sem terem casado, ajudam a criar os irmãos menores e os sobrinhos.
          Em quase todas as famílias existe uma dessas maravilhosas mães postiças. E quase todos tivemos uma irmã ou uma tia que completou o zelo que recebemos de nossa mãe. Eu tive minha Didinha, minhas filhas e netos têm a sua Deda, e é bastante provável que também você tenha tido e tenha ainda a sua.
          Na maioria dos casos, a mãe postiça acaba sendo mais que mãe. Ela vive para aqueles que se tornaram seus filhos pelo amor. Toda a sua preocupação é com eles. Chora por eles, sorri com eles, vive a vida deles.
          É o mistério da maternidade espiritual. A mãe postiça se realiza amando filhos alheios, e com isso prova que ser mãe é muito mais do que simplesmente gerar uma vida.
          Aquela freirinha não estava brincando ao dizer que tem 122 filhos. Ela vive para todas aquelas crianças. Dedica a cada uma delas o seu total amor. É mãe sim. E que mãe!



O avião, o jipe e a mulher

Eram meados dos anos 1960. Numa conversa com o agrônomo Aníbal Bianchini da Rocha, ele me disse algo de que nunca mais me esqueci: que três contribuições foram fundamentais na colonização do norte e noroeste do Paraná – a do avião, a do jipe e a da mulher.
          No começo, aqui não havia estradas. O avião, cavalo voante do desbravador moderno, pousava em qualquer clareira da mata, despejando gente arrojada em cima da terra que ansiava por parir fartura. Contavam-se proezas incríveis daqueles ginetes do ar, que perturbavam o sono das onças com o ronco festeiro dos seus teco-tecos. 
          Abertos os primeiros caminhos, o jipe acompanhou o avião no mergulho do homem floresta a dentro. Trotando nos picadões, rosnava qual fera de aço, pulando buracos, amassando espinhos, esmagando cobras, empurrando tocos, desafiando o que surgisse à frente.
          Os caminhos viraram arremedos de estradas. E o jipe ainda nelas seguia atravessando túneis de poeira vermelha em épocas de sol, engatando reduzida e calçando correntes em dias de chuva, subindo e descendo aqueles morros escorreguentos que nem quiabo. O avião no céu, o jipe no chão, transportando o agito para o sertão selvagem. O homem invadindo a mata, guloso de plantar para enricar ligeiro.
          Mas o homem não teria vencido como venceu, mesmo com os seus aviões malucos e os seus jipes desassombrados, se a seu lado não estivesse a mulher. Só Deus sabe o que enfrentaram aqui aquelas heroicas senhoras, naqueles tempos de total desassistência e desconforto.
          Sair de sei lá onde, com as crianças e as panelas nas costas, para viver num lugar sem nenhum recurso, convenhamos que foi coragem das grandes. Os maridos plantando roças e elas em casa criando filhos, cozinhando inhame, lavando roupas que o pó e o barro transformavam numa espécie de encerado. E mais: rezando pra Deus ajudar, que só Deus podia ajudar na completa desproteção daquele fim de mundo.
          Olhem que se eu fosse prefeito mandaria erguer um monumento para elas. Outro para o teco-teco. Outro para o jipe. Mandaria mesmo.