sexta-feira, 30 de setembro de 2022

CÓLICA DE SUA ALTEZA

 CÓLICA DE SUA ALTEZA

A. A. de Assis

 

Vou repassar, com as vírgulas e os etcéteras, o que na memória guardei do que me foi repassado por um amigo brincalhão. A cidadinha recebera a visita de um príncipe que por aquelas áreas excursionava. Faixas saudando Sua Alteza, bandinha de música, a criançada das escolas abrindo alas e sacudindo bandeirinhas, um foguetório de ensurdecer até o gado que pastava nas redondezas, e o povo todo em traje de festa para a nobre acolhida.

          Chegado, saudado, discursado, o mais medalhado visitante que o lugar já conhecera foi almoçar na chácara do principal chefe político do município.

           Vasta macarronada, carnes várias, o homem comeu além da conta, resultando inoportuno incômodo intestinal. A discreta pergunta a um dos empregados: “Onde é o banheiro?” A resposta simplória: “A gente aqui toma banho no rio ou na bacia; qual é que a alteza prefere?” O problema, porém, não era banho, eram outras urgentíssimas necessidades: “Onde vocês esvaziam o ventre?”, indagou o ilustre sem rodeios, apalpando o volumoso abdome. “Ah, sim... nós costuma ir atrás da moita, lá no quintal... mas alteza também faz isso?”

          A alteza em apuros, o pessoal estudando alguma solução honrosa: “Se segura um pouco, que vamos cuidar das providências”. Minutos depois voltou a dona da casa: “A alteza pode adentrar ali naquele aposento”.

          Já quase coisando nas ceroulas, o príncipe fechou a porta, olhou em volta, assustou-se com o cenário: jarros de flores, um tapete vermelho, sobre o tapete um urinol.

          Se é que príncipe também faz dessas avexadas coisas, então que sejam feitas com a indispensável dignidade, nos conformes das nobres etiquetas.

          Mas a hora não era apropriada para tais sofisticados raciocínios. O distinto despiu-se, acomodou-se, aliviou-se... mesmo um tanto desajeitado com a robusta retaguarda em tão acanhado recipiente.

         Resolvida a emergência, entrou em pauta outra circunstância, não menos grave: o papel. Nem sequer um pedaço de jornal. Usar o lenço? Nesses momentos vale tudo. O angustiado aristocrata ia começar a operação quando ouviu a banda vindo na direção da casa...

         Que seria agora? Os músicos pararam em frente, o príncipe não conteve a curiosidade, levantou-se em condições não muito elegantes, foi espiar pela greta da janela.

          Era a homenagem mais estranha que já recebera em toda a sua biografia.

          A bandinha caprichando no dobrado, a criançada formando duas filas, no meio vinha entrando um par de belas moças trazendo reluzente bandeja de prata com o sucedâneo local do papel higiênico: meia dúzia de sabugos, mimosamente escolhidos. “Para a alteza havera de ser tudo muito do especial”.

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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 30-9-2022) 

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