quinta-feira, 24 de novembro de 2022

O DENTE PENHORADO

 O DENTE PENHORADO

A. A. de Assis

 

O distinto entrou numa fase de vento contra, perdeu tudo, ficou devendo a meio mundo, inclusive a um vizinho que tinha horta no quintal e lhe fornecia legumes e verduras. Uma nota comprida em tomate, alface, cenoura. Acontece que o vizinho, homem pacato mas inimigo dessa coisa de levar cano, bateu pé firme, encostou na parede o infeliz, e falou grosso: “Se o senhor não tem dinheiro, me pague com algum objeto... De mão vazia não saio daqui”.

     Nada havia a oferecer: os móveis, os trens de cozinha, o passarinho com gaiola e tudo, as roupas, a bicicleta do filho, os outros credores já haviam levado.

     Mas o homem insistia: “Alguma coisa havera de ter sobrado... já sei... esse dente aí, esse dentão de ouro que o senhor tem na boca. Levo ele, deve estar valendo um tanto. Ou levo ou o senhor penhora ele e me paga o que deve”.

     “Penhorar não dá – explicou o devedor – eu acho que ninguém aceita dente no prego. Que ideia mais estapafúrdia...”.

      O credor não quis saber de desculpa: “Se ninguém aceitar, eu aceito. Quando o senhor puder, me paga com juro, e aí então devolvo a joia”.

     Era um dente de estimação, que ele desde menino sonhara pendurar no sorriso. Ouro de verdade, um belo canino colocado nos bons tempos, adorno que lhe garantiu muitos e irresistíveis flertes dirigidos às moças do bairro. Um tesouro mesmo. Tudo, menos penhorar tão nobre e rebrilhosa peça.

     A voz do vizinho cada vez mais ameaçadoramente medonha. Era ceder ou enfrentar as consequências. Mas como extrair o dente, se ele não tinha como pagar ao dentista?

      “Não tem mistério – emendou o credor –, pago eu a conta ao doutor e debito em sua dívida. Afinal ouro é ouro, todo dia tá subindo de preço, deve cobrir qualquer despesa”.

     Recibo passado e dolorosamente assinado, o homem levou a joia e um documento em que o devedor lhe dava autorização para vender o objeto, caso a dívida não fosse paga após meia dúzia de meses.

     Nesse meio tempo o devedor se encalacrou mais ainda, sumiu, dizem que se mandou para a Amazônia, sabe-se lá.

     Terminado o prazo, o vizinho esperou mais algumas semanas, até que de repente começou a desfilar sorrindo mais que nunca. Achou melhor não vender o dente; seria um desperdício. Instalou a preciosidade na boca e se realizou.

     Se algum dia você encontrar por aí um cidadão robusto ostentando reluzente dentão, pode ser que não seja o tal, porém também pode ser que seja.

     Por via das dúvidas, melhor pagar pontualmente as alfaces que dele comprar...

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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 24.11.2022)

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